quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Arte Indígena no Brasil Uma cultura sem história


O eterno presente de um universo mágico e ritual
A palavra arte - enquanto categoria geral da estética - não tem equivalentes em línguas nativas, embora haja várias palavras para designar todos os tipos de artesanato, habilidades e comportamentos que unificamos sob o nome de "arte indígena". A rigor, a idéia de uma arte dos povos ditos "primitivos" é uma criação dos antropólogos influenciados por filósofos da arte. Sob esta denominação foram reunidas danças, rituais, pinturas e enfeite corporal, cerâmica, música, fábulas, artefatos mágico-cerimoniais e objetos do uso diário.
O motivo principal que leva esses povos a criar e consumir coisas "artísticas" raramente é o prazer estético; em geral é de ordem mágica, utilitária ou educativa.
O exame sistemático que os antropólogos fizeram dos comportamentos e artefatos indígenas organizados esteticamente levou à descoberta de artes esquecidas pelos civilizados; É o caso da pintura corporal, ou dos arranjos de penas, há poucas décadas considerados brinquedos de "povos infantis".
Essas artes não se fundiram significativamente com as européias e africanas, formadoras de nossa tradição arística. Entretanto, representam 30.000 anos da história - ou "falta dela" -, pois esses povos não tem memória do passado além de algumas gerações.

As raízes profundas do espetáculo ritual


O único passado que os indígenas conhecem é o mítico, reconstruído a cada geração para atender às necessidades da cultura que o inventa. É um pseudo-passado que serve não para registrar fatos concretos - como pretende nossa "ciência" da história - , mas para explicar fenômenos naturais e tabus.
Os tabus são as proibições nascidas de necessidades reais e da distribuição do poder entre os membros da tribo. Como a natureza, as necessidades sociais e a distribuição de poder mudam com o tempo, esse passado também muda, num constante processo de mitopoiese - a criação da narração mítica - que se faz pela rearticulação dos mitemas, ou elementos dessa narração. Assim, os "fatos míticos" ao mesmo tempo ocultam e explicam o mundo.
Desse passado emergiu a mais importante das artes tradicionais americanas: o espetáculo ritual, do qual a tribo inteira participa - cada um com o seu papel distribuído segundo o sexo, a idade, a atividade, a situação social - e que integra desde música, dança, pintura corporal, até magia e comilança.
Nesse exuberante ritual festivo, os mitos que explicam e os mitos que escondem os valores profundos da cultura manifestam-se com elevado grau de participação de todos. Os atores, cobertos de palhas e máscaras, são ao mesmo tempo atores e antepassados totêmicos.
Em sua coreografia encontram-se às vezes cosmogonias inteiras, descrições do universo, "geografias" míticas, que dividem o espaço da aldeia em "regiões" associadas com os complexos sistemas de parentesco e as distribuições do poder.
O espetáculo ritual é, entre outras coisas, um autêntico objeto de arte conceitual, mesmo porque reúne quase todas as artes indígenas, em parte como simples manifestações de alegria, em parte como expressão dos mitos que regem a existência e produzem o ritual. As próprias tensões interiores da cultura podem ser simbolizadas na pintura corporal ou na arte plumária.
Arte na vida cotidiana
A pintura corporal dos caduveus ou Kaduwéus , é reveladora a esse respeito. Essa cultura de ferozes guerreiros e organização matrialcal, habitava o Pantanal. Sua sociedade dividia-se em grandes nobres, guerreiros e o povo comum. Cada um desses grupos e subgrupos usavam pinturas corporais distintas, muito elaboradas, com uma estranha característica: os desenhos nunca coincidiam com alguma estrutura ou simetria do corpo humano - ao contrário, rompem com elas; o rosto é enquadrado como cartas de baralho, as linhas diagonais cruzam com os lábios e o nariz, negando-os, como se estes não existissem.


Pintura corporal - Caduveus ou Kaduwéus

Enfeites plumários



Pintura corporal

A um religioso do século XIII, que lhe perguntou por que se pintava, um caduveu retrucou: "E você, por que não se pinta? Quer se parecer com os bichos?" Com efeito, apenas os homens podem preferir, a criação da natureza, a criação artística, simbólica, cheia de significadoss livremente escolhidos. É o artificial da cultura que define o homem distinguindo-o dos animais. Por isso a pintura corporal dos caduveus é mais que um simples distintivo de castas: ela fala de um componebte profundo da cultura - a própria concepção da vida, imaginada por aquela orgulhosa sociedade de guerreiros.
A partir desses fatos é possível compreender por que as artes indígenas não podiam ser assimiladas pela cultura brasileira em formação, a não ser como elementos esparsos e destituídos de seu significado original.
Fora das estruturas da existência indígena, de seu complicado sistema de parentesco, reprodução, trabalho e magia, a arte dos índios perdeu, com o sentido, a compreensibilidade.
Os restos arqueológicos
Pouca coisa sobrou do grande naufrágio da arte indígena. Dos tapajós, poderosa nação que habitava a região de Santarém, restam apenas os muiraquitâs - pequenas rãs de pedra verde, preta, vermelha ou cinzenta -, machados polidos e uma crâmica extraordinária, feita principalmente de vasos, mais escultura que olaria.


Acima, a tanga ritual de cerâmica usada pelas mulheres marajoaras nas festas míticas e religiosas


Estatueta Tapajônica


Vaso de gargalo com asas, um dos mais elaborados exemplares da arte tapajônica.
Figurinhas de animais decoram a peça.


Igaçaba ou urna funerária marajoara

A cultura Marajoara, vizinha da Tapajônica e mais conhecida, foi, na realidade, uma sucessão de culturas, das quais ainda sabemos muito pouco. Os primeiros habitantes chegaram à ilha de Marajó por volta de 3000 a.C, e não deixaram mais do que alguns machados de pedra. Entre 980 e 400 a.C, devem ter chegado à ilha os ananatubas, que construíram grandes malocas permanentes e fizeram uma cerâmica menos elaborada que as sucessivas.
A segunda onda de colonizadores deve ter trazido um povo, talvez do grupo caraíba, portador de técnicas de plantio e de organização social bem mais complexas. Os enormes aterros - tesos - perto do lago Arari deviam ter função religiosa. Neles se encontram as grandes urnasfunerárias - igaçabas - ornadas com a decoração labiríntica característica daquela cultura. A construção dos tesos denota a organização coletiva do trabalho, a importância da religião e certa divisão em classes.


  Muiraquitâ, o amuleto

As estatuetas marajoaras lembram muito as "grandes mães" da Pré-História e tem como parentes as bonecas carajás (ilha do Bananal). São figuras acéfalas, femininas ou de cabeça bem pequena e triangular, sem braços, as pernas curtas em U servindo de base. Várias possuem pedrinhas no interior, para servir de chocalho; outras tem uma pequena tanga ritual, em cerâmica de fundo branco ou vermelho, decorado em preto. A tanga era usada pelas mulheres marajoaras nas festas míticas e funerárias realizadas nos tesos.
Lá pelos meados de XII, os marajoaras devem ter começado a decair. Talvez a nova terra fosse pobre demais para manter seus métodos avançados de cultivo, trazidos de fora. De qualquer modo, sua grande cerâmica desapareceu. Max Schmidt chegou a emitir a hipótese de que o complicado desenho geométrico - que não foi exclusivo dos marajoaras, atingindo as culturas de Cunami e Maracá, sem falar das tribos do Sul - deriva do trançados das esteiras e cestos, transposto para o barro. Mas outras tribos atuais, inquiridas sobre certos desenhos geométricos, declararam não passarem de sinais convencionais: a cruz era um lagarto, o triângulo, uma tanga, etc.
A mais bela cerâmica tupi-guarani deve ter sido a dos omaguás, que viajantes espanhóis do século XVII descrevem como esmaltada e vitrificada.
Artificialmente preservada pelo silicone e pelo ar condicionado dos museus, sob os olhos muitas vezes indiferentes dos visitantes, de algum modo a arte indígena está mais morta do que quando jazia sob a terra. Mais que uma lição de arte, ela é uma lição de vida.

Bibliografia consultada:
Arte no Brasil - São Paulo: Ed. Abril. vol.1

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